Em novembro, a Itaú Cultural Play – www.itauculturalplay.com.br –, plataforma de streaming do cinema e audiovisual brasileiro, acrescentou em seu catálogo uma mostra de filmes dedicada especialmente ao ator e diretor carioca Zózimo Bulbul (1937-2013). São nove produções realizadas por ele, com destaque para seu primeiro curta-metragem, Alma no Olho (1973), e o último deles, Renascimento Africano (2010), além da produção que marcou sua estreia como ator, Pedreira de São Diogo (1962). Considerado uma referência da cinematografia afro brasileira, Bulbul fez da história do povo negro no Brasil, principalmente do Rio de Janeiro, o seu caminho através do cinema. Ele também é conhecido por ser o primeiro ator negro a protagonizar uma novela no país, Vidas em Conflito (1969), na extinta TV Excelsior.
Obra em ordem cronológica
Na Itaú Cultural Play, pode ser conferida a filmografia de Zózimo Bullbul. O primeiro curta-metragem com sua direção, Alma no Olho (1973), é uma produção pioneira no debate sobre representatividade negra nas telas. Com trilha sonora de John Coltrane, o filme mostra retratos fragmentados do rosto, da boca e de um corpo nu como ponto de partida para uma viagem por diferentes personagens e gestualidades negras. Por elas, a história descreve a trajetória do negro desde o corpo livre mítico-escultural ao escravo acorrentado e torturado pelo colonizador branco.
O documentário Aniceto do Império (1981) resgata a biografia desta personagem fundamental da história da cultura negra e operária carioca. Fundador da Império Serrano, uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro, Aniceto conta sua história pela própria voz, indicando a casa onde morou e os lugares onde viveu. A presença viva do artista-militante se completa com a imagens de shows e sambas.
Considerado o mais importante documentário já feito no Brasil a respeito da abolição da escravidão, o longa-metragem Abolição (1998) possui um farto material de arquivo para investigar esse processo histórico, a partir de um olhar preto. Entrevistas com personalidades como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzáles e Grande Otelo colocam em xeque as interpretações canônicas sobre o evento, contrapondo a situação da população negra 100 anos depois.
O documentário Samba no Trem (2000) percorre com liberdade os vagões dos trens e bairros populares da capital fluminense, conversando com pessoas e captando os preparativos das rodas e o espírito democrático dos festejos. Dedicado ao samba, que é uma das maiores expressões populares brasileiras, e a seus artesãos, músicos negros, o filme acompanha os bastidores da celebração do Dia Nacional do Samba, no Rio. Sambistas afinam instrumentos, enquanto cavaquinhos e pandeiros contaminam uma multidão de dançarinos.
Apresentado a partir de um conjunto urbano de ex-escravizados no Rio de Janeiro, Pequena África (2002) resgata a história da comunidade negra do Estado. A aglomeração de casas e as lembranças de uma senhora, filha de africanos, vão aos poucos mapeando a antiga vida do lugar. Nesta região, está a Pedra do Sal, lugar de chegada de escravizados e também um dos berços do samba. Imagens de ruas e moradias se combinam a testemunhos memorialísticos e à celebração de um patrimônio cultural inestimável.
Debruçado sobre a história da Praça Tiradentes, local de manifestações históricas e do surgimento do samba de gafieira na capital carioca, República Tiradentes (2005) mostra edifícios, ruas e monumentos da praça. Porém, o olhar sensível de Bulbul não se restringe a essa presença física, e mergulha na vida popular, seus tipos humanos, dramas e manifestações culturais.
Produzido em 2006, o documentário Zona Carioca do Porto, por sua vez, mergulha nas lembranças da região portuária do Rio, ponto de referência histórico para o desenvolvimento da cidade e que remete aos tempos da colonização e da vida das comunidades afro-brasileiras. O filme também mostra o trabalho dos moradores pelo reconhecimento de um espaço quilombola encravado na capital carioca.
No mesmo ano, o filme Referências (2006) mostra a reunião de um grupo de cineastas para debater o cinema negro no Brasil, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Entre eles, estão diretores pioneiros como Haroldo Costa e Waldir Onofre, e nomes fundamentais como Antonio Pitanga e Joel Zito Araújo. Despretensioso como uma conversa entre amigos, trata-se de um registro sobre a participação dos artistas negros na formação do cinema brasileiro. Trechos de filmes, dentre eles o raro longa-metragem Pista de Grama, de Haroldo Costa, com a participação de João Gilberto, se unem a depoimentos, análises e memórias pessoais.
Para concluir a mostra, também entra no catálogo Renascimento Africano (2010), o último filme produzido por Zózimo Bulbul, que viajou para o Senegal, a convite do governo local, com a proposta de retratar sua cultura e história, tão pouco conhecidas para os ocidentais. A jornada do diretor pela jovem nação inicia-se pela Ilha de Gorée, ponto de comércio de negros escravizados, que sustentou parte da riqueza dos países europeus por mais de dois séculos. Ao mesmo tempo doloroso e festivo, o documentário, realizado por conta das comemorações dos 50 anos de independência do Senegal, mostra que a consciência histórica sobre a barbárie da escravidão não apaga a promessa de um futuro de autonomia e liberdade para o continente africano.